A validade do protocolo via correio eletrônico para os fins previstos na Lei Federal Nº 9.800/99 – da equivalência ao conceito de Fac-Simile
No ano de 2020, a pandemia causada pelo coronavírus Sars-CoV2, causador da Covid-19, gerou restrições ao atendimento de advogados e jurisdicionados pelos órgãos do Poder Judiciário, mormente naqueles tribunais nos quais o processo eletrônico ainda caminha a passos lentos. Tais restrições, com a limitação do peticionamento físico, fizeram ressurgir discussões a respeito da implantação de sistemas digitais para a tramitação dos processos e da possibilidade de protocolo de petições físicas urgentes via correio eletrônico (e-mail).
Num país de dimensões continentais como o Brasil, atendido por milhares de varas, a prática de atos processuais em processos físicos por vezes depende da transmissão de dados via fac-símile, originalmente realizada através de aparelhos de fax. Nos últimos anos, entretanto, os aparelhos de fax têm sido descartados pelas varas, sendo possibilitado por algumas secretarias o envio de peças para protocolo via correio eletrônico como fac-símile, procedimento que encontra resistência por parte dos magistrados na esteira de jurisprudência anacrônica do Superior Tribunal de Justiça.
Como é sabido, o artigo 1º da Lei nº 9.800/99 permite que as partes se utilizem de sistema de transmissão de dados e imagens via fac-símile ou similar, para a prática de atos processuais que demandem a apresentação de petição escrita, sob a condição de que o documento original seja apresentado dentro de 5 (cinco) dias ao órgão de destino. Destacamos o texto do dispositivo legal.
Art. 1o É permitida às partes a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita.
Durante muito tempo foi nutrida a errônea compreensão de que a referência à fac-símile pelo referido dispositivo legal se voltava unicamente às transmissões de documentos via aparelho de fax. Tal assertiva, entretanto, está longe de ser realidade.
O termo fac-símile se origina do latim (fac = faz e simile = similar, idêntico), designando uma forma de reprodução fiel de textos e imagens constantes em determinado documento. Portanto, a partir da disposição legal acima, as partes podem se valer de sistemas de transmissão de dados e imagens, sem distinção se por via telefônica ou digital, desde que tais sistemas sejam capazes de reproduzir de forma fidedigna o documento original.
Exsurge, destarte, o questionamento acerca da equivalência da transmissão de dados digitalmente, via correio eletrônico, e a transmissão realizada por meio de aparelho de fax, para os necessários fins exigidos pela legislação.
Para melhor compreensão, faz-se necessário identificar como se dá o funcionamento de um aparelho de fax para transmissão de documentos. O aparelho de fax normalmente consiste de equipamento munido de scanner (um captador fotográfico de dados e imagens), modem, linha telefônica e impressora. O scanner converte o documento impresso em uma imagem digital por via fotográfica, o modem então irá transmitir esta imagem eletronicamente pela linha telefônica para outra máquina de fax e a impressora do receptor então produzirá uma cópia idêntica do documento recebido.
No caso de transmissão de petições para processos físicos via e-mail, o procedimento em nada difere da transmissão via fax, senão pela celeridade e praticidade no envio, recebimento e conferência dos dados. O sistema de transmissão via correio eletrônico conserva a identidade de transmissor e receptor, bem como a integridade do documento digitalizado através de um scanner.
Em vez de números de telefone para identificação dos aparelhos transmissor e receptor, um endereço eletrônico específico identifica quem envia e quem recebe os dados. A identificação em duas pontas, portanto, garante a segurança de quem envia o documento e a confirmação do transmissor por parte de quem o recebe.
No que se refere à integridade e correspondência do documento, a petição devidamente assinada fisicamente será convertida em uma imagem digital via scanner, garantindo a perfeita identidade entre os dados constantes no documento original e o arquivo digitalizado. O scanner nada mais faz do que extrair uma imagem fotográfica do documento físico, tal como o faz o scanner embutido no aparelho de fax, convertendo-o numa imagem digital, conservando fontes, espaçamentos, imagens e assinaturas. Tal arquivo será então transmitido pela rede mundial de computadores até o e-mail do receptor, que então promoverá a impressão do documento recebido.
Nem se diga que o recebimento de petições via correio eletrônico não garantiria a integridade das informações de transmissão e recepção. Tal como o recibo gerado pelo aparelho de fax, os correios eletrônicos permitem o registro da recepção da mensagem pelo endereço de e-mail do destinatário e sua leitura, registrando a data de transmissão inclusive para os fins de protocolo da petição física. Nenhum dado se perde e as datas de envio e recebimento podem ser objetos de conferência por todos os envolvidos na transmissão das informações.
A prática de atos processuais mediante envio de dados por correio eletrônico, portanto, reúne todas as condições exigidas pelo art. 1º da Lei nº 9.800/99, haja vista que: i) trata-se de transmissão de dados e imagens, no caso, por via digital; ii) configura fac-símile (reprodução fotográfica integral do conteúdo original); iii) garante a identificação do transmissor e do receptor; iv) permite a confirmação do recebimento do documento e sua conferência e; v) identifica a data do envio e recebimento para o transmissor e o receptor.
O protocolo de petições físicas via e-mail apresenta ainda maior vantagem, pois, diversamente do que ocorre com as transmissões de dados via fax, que exigem do transmissor e do receptor a disponibilidade de um indivíduo para acompanhar por longos minutos – senão horas – desde o processo de envio até a impressão no aparelho receptor, a transmissão de dados por correio eletrônico tem envio e recepção quase instantânea, de forma ágil e segura.
A insistência na compreensão de que fac-símile consiste apenas em transmissões de documentos via aparelho de fax, portanto, nada mais representa do que a constante resistência do Poder Judiciário nacional em adotar as tecnologias do século XXI, insistindo na manutenção dos ultrapassados aparelhos de fax para transmissão de dados por cabos telefônicos quando a era da informática garante mais celeridade e segurança na transmissão dos mesmos documentos.
Para todos os fins legais e exigências técnicas, um documento físico digitalizado via scanner, convertido em imagem digital e transmitido por correio eletrônico, conservando todas as informações do original, deve ser compreendido como fac-símile para os fins previstos no art. 1º da Lei nº 9.800/99, não se encontrando no texto legal exclusividade às transmissões realizadas por aparelho de fax.
Apesar da conclusão aqui adotada, faz-se imperioso o registro de que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na interpretação conferida à Lei nº 9.800/99, apenas faz reiterar entendimentos arcaicos acerca da transmissão de petições via correio eletrônico, não os reconhecendo como meio válido para protocolo:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA.INTERPOSIÇÃO VIA E-MAIL . INADMISSIBILIDADE. NÃO EQUIPARAÇÃO AO FAC-SIMILE. INTEMPESTIVIDADE. PRECEDENTES. INTEMPESTIVIDADE.
1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que “o recurso interposto via email é tido por inexistente, não podendo ser considerado o correio eletrônico instrumento similar ao fac-símile para fins de aplicação do disposto na Lei n. 9.800/1999, na medida em que, além de não haver previsão legal para sua utilização, não guarda a mesma segurança de transmissão e registro de dados” (AgInt no AREsp 1.003.394/MG, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 06/11/2018).
2. Assim, considerando que o recorrente foi intimado do acórdão recorrido em 22/3/2019, é inafastável a conclusão de que o recurso em mandado de segurança, interposto em 16/4/2019, é intempestivo.
3. Agravo interno não provido.
(AgInt no RMS 61.298/BA, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/05/2020, DJe 22/05/2020)
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO VIA E-MAIL. INEXISTENTE. INTEMPESTIVIDADE. PORTARIA CONJUNTA 37/2018 DO TJDFT. NÃO APLICAÇÃO AOS RECURSOS DIRIGIDOS A ESTA CORTE. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. A jurisprudência desta eg. Corte de Justiça é firme no sentido de que o “recurso interposto via e-mail é tido por inexistente, não podendo ser considerado o correio eletrônico instrumento similar ao fac-símile para fins de aplicação do disposto na Lei n.º 9.800/99, na medida em que, além de não haver previsão legal para sua utilização, não guarda a mesma segurança de transmissão e registro de dados” (AgRg no Ag 1.111.475/MG, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe de 25.5.2009).
2. A Portaria conjunta nº 37/2018, editada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, com a finalidade de permitir o envio de petições àquele Tribunal por correio eletrônico (e-mail), não se aplica aos recursos dirigidos a esta Corte, cujo processamento é regulado em lei federal.
3. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no AREsp 1414107/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2019, DJe 05/09/2019)
Segundo a Corte da Cidadania, não haveria previsão legal para regular o uso do correio eletrônico para transmissão de petições e que o documento enviado por serviço de e-mail não guardaria correspondência com o conceito de fac-símile, apesar da perfeita correspondência demonstrada e da própria previsão legal contida no art. 1º da Lei nº 9.800/99, que garante às partes o uso de sistemas similares ao fac-símile para a prática de atos processuais.
A bem da verdade, fato é que o STJ apenas não aceita que o correio eletrônico corresponda a fac-símile por mero apego a tecnologias hoje ultrapassadas, sem se aperceber que a era dos aparelhos de fax está chegando aos seus momentos finais e que seu substituto óbvio é o correio eletrônico.
Não obstante a jurisprudência da Corte Superior se direcione em sentido contrário ao que se conclui a partir da análise acima realizada, faz-se mais do que necessário o levantamento da discussão perante aquele Tribunal para revisão do entendimento ultrapassado que tem sido meramente reiterado ao longo dos anos. É imperioso que o Superior Tribunal de Justiça compreenda que os anos 90 já se encontram a duas décadas de distância, que os aparelhos de fax estão próximos de sua extinção e que a transmissão de informações e documentos por correio eletrônico é parte do cotidiano do cidadão contemporâneo, devendo ser reconhecido como via para garantia do acesso à justiça.
Paulo Rômulo Maciel de Souza Júnior, Advogado na equipe Tributária e Fiscal.
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